Não posso escrever mais alto

Herberto Helder, a morte<br> com aviso prévio

Domingos Lobo

Vem a morte, assim, pé ante pé, poema a poema, e dela, morte, ou ci­ca­triz, es­trela ful­gente, sa­bemos o que dizem os po­emas, a da­nação das pa­la­vras, o que nelas ins­cre­vemos, sangue, ab­sinto, vís­ceras, sal. E está ali, A Morte Sem Mestre, que se aprende no de­vagar da vida, nas fontes, nos li­vros a que­rerem mudar de sítio e de pó, e nós qui­etos, ou o poeta destas Ser­vi­dões agrestes das pa­la­vras, das que su­focam, das que li­bertam, das que são es­puma e mar, ou mu­lher in­ven­tada, breve corpo para a so­lidão sô­frega, O Amor em Vi­sita, «dai-me uma jovem mu­lher com sua harpa de sombra» e eis a mú­sica, não dos versos, mais para além dos versos, das pa­la­vras – das pa­la­vras únicas, mol­dadas a pre­ceito, com vagar de ar­tesão, de Her­berto Helder.

O maior poeta por­tu­guês dos úl­timos 50 anos? Que im­porta medir o tempo, a lon­jura mo­dular das pa­la­vras e dos equi­nó­cios? Era um poeta e isso conta, um poeta que nos obri­gava a olhar de pé para o mundo, para as coisas fu­gi­dias, a re­co­lher das fontes o húmus e a água, a mais pura. E isso é que conta nestes dias azedos, alheios tempos, tempo que se mede em fo­lhas de axel e abs­trac­ções de ranço tec­no­crá­tico, sem lastro para o sonho. Um poeta que morreu, Her­berto Helder de seu nome, com ele a busca de ou­tras vas­ti­dões, de ou­tros ter­ri­tó­rios, do que ficou desse si­lêncio – fi­cará ou não, é tudo tão vo­látil e re­la­tivo – «um grão de sal aberto na boca do bom leitor im­puro», e Os Passos em Volta de algum de­sas­sos­sego, êx­tase vago, no vento que era ele­mento destes versos, dessa Cobra, me­mória e braços, con­fusão e des­lumbre, coisas de pouca monta porque «o poema é um animal; ne­nhum poema se des­tina ao leitor», o poema «vive dos lu­cros da su­pers­tição» [...] «e o poeta não trans­creve o mundo, mas é o rival do mundo», en­tramos e saímos do poema com os olhos en­xutos, e pas­samos à vida lá fora, de­pois de fe­charmos as portas e tran­carmos as ja­nelas, e vamos à bucha que já tarda.

Her­berto Helder foi, dizem os com­pên­dios, dos tempos das ter­tú­lias sur­re­a­li­zantes do Café Gelo, com Ce­sa­riny, Luís Pa­checo, Ma­nuel de Lima e ou­tros im­per­tur­bá­veis pes­qui­sa­dores de nu­vens e trans­gres­sões, até à des­co­berta do mundo para lá das fron­teiras rec­tan­gu­lares do su­foco: Ho­landa, Bél­gica, França, An­gola. Pa­ra­gens fu­gi­dias para en­tender as gentes, seus mur­mú­rios, a res­pi­ração imen­su­rável, a origem do real, «Mas no fundo, no fundo,/​é a boca des­man­chada que sangra de­vagar», e trazer esse vór­tice, esse pólen de volta em Pho­to­maton & Vox para dentro dos po­emas, do mais denso e ful­gu­rante acto poé­tico de que a po­esia por­tu­guesa foi capaz de­pois de Álvaro de Campos. Pa­la­vras am­plas, em per­ma­nente pro­cesso de rein­venção, cos­mo­ci­dade, ul­tra­pas­sagem de fron­teiras e câ­nones.

Her­berto Helder re­gressa ao País – é breve a pas­sagem por al­guns ofí­cios; pelas Fa­cul­dades de Le­tras e de Di­reito – para se isolar da «feira de vai­dades» em que se trans­formou parte da li­te­ra­tura in­dí­gena. Alheio a pre­bendas e a es­pú­rias vi­gí­lias, a sua po­esia foi-se cons­truindo longe das luzes efé­meras da fama, para que as pa­la­vras, em livre ges­tação, re­gres­sassem ao cais ori­ginal, à sua ful­gu­ração, sua febre, seu ins­tante de reu­nião, rito e exe­gese.

Po­esia her­mé­tica dirão, lam­peiros, monco tor­cido, al­guns su­jeitos que se as­sumem de ja­nela em rés-do-chão a este verbo ma­duro, agreste, dentro da carne a la­tejar, sopro de vida e chama, «como ob­jectos ar­dentes»; po­esia Her­berto, sim; brisa em que se es­praiam as pa­la­vras, fumos e ru­mores do que é es­crever mais alto, com a Co­lher na Boca, pronta para o de­sas­sos­se­gado ri­tual de as ler, de as sorver. São únicas. E estão vivas.

 



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